Horácio Leitão Rocha
"O ‘cobói' morreu-me nos braços"
“Fui para Angola como grumete e tive a sorte de não matar nem de combater muito, mas assisti à morte do meu chefe devido à explosão de uma mina anti-pessoal colocada numa picada.
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Os primeiros meses até foram calmos, mas depois tudo piorou. Em Agosto de 1973, o meu pelotão foi para o destacamento da Marinha de Zimbeze, em Chilombo. Aqui começou o nosso tormento. Fomos render um pelotão que, numa operação de abastecimento, foi atacado pelo inimigo. Morreram quatro militares e dois ficaram gravemente feridos. Este pelotão estava em Lumbala, a 40 km do nosso acampamento. O ataque foi muito bem preparado e os ‘turras’ não tiveram piedade dos nossos combatentes: mataram-nos e roubaram-lhe as roupas, vinte grades de cerveja e outros bens. Ao chegarmos, para render os camaradas, ainda vimos muitos destroços e ficámos a saber o que nos esperava.
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No dia 15 de Novembro de 1973 aconteceu um episódio que me marcou para toda a vida e nunca mais me sairá da memória. Partimos de manhã cedo para uma operação de reconhecimento na densa e perigosa mata. Seguíamos por picadas em três viaturas. Eu seguia no carro da frente, com mais quatro homens.
A certa altura, o nosso carro pisou uma mina e foi pelos ares. Explodiu na roda da frente do lado esquerdo, mesmo por baixo do condutor, o marinheiro José Franco Belo, mais conhecido por ‘Cobói’ – era o meu chefe e um homem que me apoiou em tudo. Eu e o Barrote fomos projectados para longe, como se tivéssemos uma mola no corpo.
Como não sofri ferimentos graves, levantei-me do chão e tentei socorrer os meus camaradas. Abeirei-me do nosso carro e vi o ‘Cobói’ no meio da chapa: tinha as pernas presas nos pedais e o peito desfeito do lado esquerdo. Mesmo assim, ainda gritou comigo para ter cuidado porque podia haver mais minas anti-pessoais prontas a rebentar e a atingir-me. Não quis saber de nada.
A minha preocupação era levá-lo dali. Ao retirá-lo do carro vi que também tinha as pernas desfeitas. Chamei o nosso socorrista, um rapaz novo, mas ele não teve coragem para o ajudar. Amarrei-lhe os garrotes nas pernas para não perder mais sangue e cobri--lhe o peito com a minha camisola.
O ‘Cobói’ ficou nos meus braços até à chegada do carro-ambulância, liderado por um sargento-enfermeiro que lhe tentou prestar os primeiros socorros. No entanto, após uma dura viagem por trilhos de terra batida, acabou por morrer nos meus braços a poucos quilómetros de Chilombo.
A imagem do meu chefe morto nos meus braços nunca mais me vai sair da memória. Ele era um verdadeiro guerreiro. Morreu na terceira comissão – tinha estado em Moçambique e na Guiné – de forma muito cruel. As últimas palavras que me dirigiu jamais as esquecerei: ' Tem cuidado contigo meu pupilo ', disse-me, antes de tombar a cabeça para o lado direito... para sempre.
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O momento mais emocionante que vivi na Ultramar foi, sem dúvida, no dia em que visitei a minha irmã que estava em a viver em Serpa Pinto. Foi uma coisa incrível, depois de longos meses sem ver ninguém da família ou conhecidos, ter encontrado a minha irmã. Felizmente que nem só em episódios tristes se baseou a minha missão por terras de Angola. Não me esqueço dos jogos de futebol e das tardes de caça aos jacarés. Ainda hoje guardo um em minha casa que me deu muito trabalho a apanhar. Quando chegou a altura de entregarmos os quartéis aos angolanos ficámos tristes porque estávamos a dar algo que era nosso e pelo qual tínhamos lutado, mas o lema que nos norteava era mais forte do que os nossos sentimentos: 'A Pátria honrai, que a Pátria vos contempla’.”